Imagine a seguinte situação: Você, TDAH, chega no trabalho em determinado dia e se lembra de um comunicado que enviou por e-mail dias antes e um dos destinatários teve o e-mail devolvido por erro de endereço. Feliz com essa lembrança espontânea você começa a prospectar o endereço de e-mail correto. Até que decide contatar um cliente que lhe informa o número de whatsapp da pessoa. Você salva o número em seus contatos e clica em conversar. O aplicativo de contatos te joga para o whatsapp e você fica perplexo ao descobrir que já havia uma conversa sua com aquele contato. Estupefato, relê aquela troca de mensagens ocorrida dez dias antes em que, você não apenas enviou o tal comunicado à pessoa como corrigiu o endereço de e-mail e acertou o cadastro no sistema da empresa.
A primeira reação é de incredulidade; não é possível que eu fiz isso. Mesmo diante da troca de mensagens você não se recorda.
A segunda reação é vergonha. Vergonha de que alguém possa ter percebido e vergonha de si próprio, tal a magnitude do erro.
Depois vem a revolta, a raiva de si mesmo, do transtorno, de si mesmo, da desatenção, de si mesmo, de si mesmo...
Quando me lembro desse episódio a imagem do whatsapp volta nítida em minha mente. O sentimento de incredulidade. Aquele episódio desapareceu da minha cabeça como se jamais houvesse existido.
Um misto de irritação, frustração, vergonha, cansaço, desânimo, vontade de sumir...
Quem não é TDAH pode pensar: mas isso tudo por causa de um erro sem consequências. Que bom que já havia resolvido a questão antes...
Não é o tamanho do erro que incomoda; é sua infindável repetição. Quantos esquecimentos na mesma semana... No mês não dá pra contar...
Naquele dia cheguei em casa disposto a procurar um médico, um bom médico e retomar a Ritalina abandonada há muito tempo. Mais de um ano. Depois, mais calmo, concluí que, pela enésima vez, me auto sabotei ao abandonar o tratamento medicamentoso. E reconheci tardiamente todo o percurso que nós, TDAHs, repetimos à exaustão:
A primeira 'constatação' é a de que o remédio não funciona mais. Depois, a dificuldade de conseguir receita; o remédio é até muito barato, mas pagar uma consulta por mês pesa muito. Mais um passo é dado ao começar a economizar no consumo da Ritalina; em lugar de dois comprimidos por dia, concentrei-me em apenas um, na parte da tarde quando sou menos produtivo. Logo passei para dia sim, dia não, e parei...
Com tantos anos de estrada, escrevendo e vivenciando o TDAH, como pude cair nessa?
Simples, o TDAH é incurável e está dentro de nossas mentes. Ele é um componente indissociável de nossa vida e, confesso, é cansativo viver o tempo todo em estado de alerta. Em alguns momentos optamos conscientemente por deixar o TDAH agir. E esse conscientemente, já não sei se foi por nosso próprio livre arbítrio, ou se já era a influência nefasta do TDAH. Creio que foi no excelente livro do Dr. Barkley Russel sobre TDAH em adultos (que a Amazon espertamente está anunciando num blog de TDAH), que ele afirma textualmente que o portador de TDAH tem seu livre arbítrio prejudicado. Nem todas as nossas escolhas são nossas realmente, grande parte delas, ou a sua totalidade, são feitas sob a influência do TDAH.
Sinto-me hoje como Sísifo, a personagem do mito grego, que como punição aos seus erros era obrigado a rolar uma enorme pedra de mármore montanha acima e ao se aproximar do cume, via a pedra rolar montanha abaixo até seu ponto inicial. E Sísifo era obrigado a empurrá-la montanha acima diariamente. Sinto-me no ponto de partida novamente.
A grande vantagem que tenho sobre Sísifo é ter TDAH. Sim, ao esquecer-me da maioria das minhas experiências passadas, apago a maior parte do sofrimento que foi empurrar a pedra morro acima, e volto a empurrá-la alegremente na certeza de que atingirei o cume da montanha com facilidade.
A mesma falta de memória que nos prejudica e envergonha, nos dá o antídoto à depressão e ao desespero do eterno recomeço. Ciclicamente, como fênix, renascemos das cinzas, reerguemo-nos do mais profundo e escuro abismo e atingimos o brilho do sol, onde passamos a acariciar com estranheza e curiosidade o enorme número de cicatrizes que trazemos na alma. Sim, somos incapazes de aprender com nossos próprios erros, e muito menos aprendemos com os erros alheios. Simplesmente esquecemos aquilo que vivenciamos, e voltamos a cometer os mesmos erros.
Se a mão que afaga é a mesma que apedreja, a mão que apedreja é a mesma que afaga.
Aqui vou eu; ao infinito e além!
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