domingo, 25 de dezembro de 2022

O TDAH E A MENTE QUE NOS ENGANA

Uma das coisas que mais me irritam é palpite de um não TDAH sobre o que devemos fazer para melhorar nossa produtividade. Algumas sugestões chegam a ser ridículas, por exemplo:
Faça listas das tarefas mais importantes. Nessa sugestão temos três problemas básicos do TDAH: o primeiro é lembrar de fazer a lista, o segundo é lembrar de consultar a lista e o terceiro e mais grave, temos muita dificuldade em priorizar tarefas de acordo com importância. Muitas vezes elegemos aquelas que nossa mente se sente recompensada, e não a mais importante. E aqui entramos na verdadeira questão deste texto, como não se deixar influenciar pelo próprio pensamento.
Quem não é TDAH ou quem não estudou profundamente o transtorno tende a qualificá-lo de maneira superficial e tola. Sugestões como organizar tarefas, fazer listas, colocar lembretes no celular funcionam se você não tem TDAH. Vou tentar explicar como nossa mente funciona:
Ao ouvir o alarme do celular tocar pela milésima vez o não TDAH pega o telefone e lê o que está na tela antes de desligar o alarme. Ele sabe que aquele alarme fora de hora tem uma função de lembrete e vai consultá-lo para saber o que fazer. Assim, várias vezes por dia ele consultará os lembretes gravados. O portador de TDAH age de maneira completamente diferente: ao ouvir o primeiro e o segundo lembretes ele vai consultar, a partir do terceiro ou quarto aquilo começa a ser um componente irritante, uma amolação e a tendência é que comecemos a desativar o alarme sem lê-lo. Mas esse é o segundo passo, o primeiro é que nossa mente vai nos dizer que sabe do que se trata aquele lembrete e que, afinal de contas, ele não é tão importante assim. E passamos a desativar o alarme sem ler. E começamos a esquecer o que o alarme deveria nos lembrar. Num momento seguinte nossa mente começa a desqualificar a utilidade do alarme. Se estou esquecendo as tarefas mesmo com o uso do alarme, isso não tem nenhuma utilidade. E paramos de usar. Essa sequência de fatos funciona de maneira exatamente igual quando se trata de tarefas sequenciais ao longo do tempo. Conferir certos trabalhos ou rotinas diariamente. Isso exige um esforço hercúleo pois a tendência é que nossa mente boicote essa chatice diária, afinal o trabalho, o estudo e as coisas sérias reduzem o tempo de divagações e prazeres mentais tão necessários pra uma mente TDAH.
Antes que os críticos de plantão venham dizer que basta que tenhamos força de vontade tentarei ilustrar como nossa mente funciona. 
O pensamento TDAH não vem embalado em papel colorido ou tem um letreiro colorido escrito TDAH. Absolutamente não, são pensamentos normais, pensamentos que nos guiam por uma vida inteira. Pensamentos que cada um de nós reconhece como nosso, como próprio e como correto. Quando desativamos um alarme sob o falso argumento de já sabermos do que se trata, não há porque duvidar do próprio pensamento. Mesmo após o diagnóstico, muitas vezes nos esquecemos da existência do transtorno e desligamos sem perceber. Outra característica do TDAH é não aprender e/ou não reconhecer os próprios erros, com isso acreditamos realmente que o alarme é inútil e o desativamos erradamente como já fizemos com outras ferramentas auxiliares anteriormente.
Por isso é muito perigoso que não TDAHs ou mesmo profissionais que não estudaram profundamente o transtorno saiam por aí dando conselhos que na prática acabam por desqualificar o portador de TDAH. Afinal é só fazer uma listinha, um check lista, um lembrete no celular que tudo estará resolvido. Não estará. Esse entendimento raso do TDAH é típico do período superficial que estamos vivendo, a criatura lê a manchete e tem certeza de já saber o conteúdo.
A batalha contra o TDAH é uma batalha contra a própria mente, a mesma mente que nos dirigiu a vida inteira, a mesma mente que reputamos como nossa, sob nosso controle e que por isso jamais suspeitamos de que fosse nos enganar. 
Nossa mente não é nossa. Pelo menos não toda. Nossa mente traz escondido o TDAH e sequer conseguimos avaliar o tamanho da participação dele em nosso cérebro. 
É uma luta contra nós mesmos, e por isso dura, dolorida e sofrida. E quase sem chances de uma grande vitória. 

terça-feira, 20 de setembro de 2022

O TDAH SONHA DE OLHOS ABERTOS




Um comentário sob o apelido de VISÃO, me tirou da inércia e motivou a existência desse post.
O comentário brilhante, aponta o cerne da desatenção como sendo uma tentativa de nossa mente de compensar a deficiência de dopamina que ocorre no cérebro do portador de TDAH. Segundo VISÃO, os portadores de TDAH passam boa parte do tempo em viagens idílicas sobre o presente ou futuro que existem apenas nas nossas mentes. A tradução disso é: sonhamos acordados. Qual é o problema de se sonhar acordado? Nenhum e todos. Quando se sonha, ocasionalmente, acordado, problema nenhum. Quando esse hábito de sonhar acordado invade o horário de trabalho, de estudo, ou outros momentos em que deveríamos estar atentos, é um problema sério, muito sério.
Segundo o comentário basta que desarmemos esse 'gatilho' que conseguiremos levar uma vida produtiva e feliz. Basta apenas desarmar o gatilho. Apenas desarmar o gatilho. Desarmar o gatilho... Que gatilho? Esses pensamentos fazem parte da minha vida desde sempre. Lembro-me de devaneios infantis a partir de nove, dez anos.
A enorme maioria dos TDAHs leva uma vida de frustrações, derrotas e perdas pessoais recorrentes. Esses pensamentos são espaços felizes que nos poupam das dores diárias, da triste imagem que temos diante do espelho. A cada dor, uma fuga para esses pensamentos prazerosos. Enfim, nesses momentos, vencemos nossas limitações, nossas falhas... Ali tomamos as decisões acertadas, falamos as palavras certas, no tom certo, no momento certo. Ali ninguém ri de nossas desatenções, de nosso destrambelhamento, de nossa falta de coordenação... Ali, somos infalíveis. Ali, somos felizes.
E não o reconhecemos. Esses pensamentos fazem parte da nossa vida de forma natural como a respiração ou o abrir e fechar dos olhos. Se eu desarmar esse 'gatilho' o que vai sobrar da minha vida? Gostarei de me defrontar com minha realidade? Todos os outros sintomas do TDAH desaparecerão com o fim do gatilho, ou terei que conviver com todas as outras características sem o alívio dos sonhos felizes ao meio do dia? 

domingo, 3 de abril de 2022

10 COISAS QUE NÃO SE DEVE DIZER AO TDAH


1) BASTA ANOTAR - essa afirmação é uma das maiores provas de desconhecimento do que é o TDAH. Não anotamos. Se anotarmos, esquecemos de consultar. Se consultarmos, não enxergaremos todos os itens ou tópicos, ou nossa mente só se importará com aquilo que é importante para ela e o restante cairá no limbo.
2)TENHA UMA AGENDA, PROGRAME SEU DIA - Essa é uma variação da anterior e demonstra a ignorância completa em relação ao TDAH. Tive um sem número de agendas (físicas e virtuais), todas foram abandonadas. Nos primeiros dias é perfeito, tudo anotado com riqueza de detalhes, à medida que o tempo passa, as anotações vão ficando mais vagas e espaçadas. Até que um dia acabam. Em geral, dura, no máximo, um ou dois meses.
3) FAÇA UMA LISTA DE PRIORIDADES - Não sabemos elencar prioridades. Simples assim. Nosso cérebro prioriza o que lhe é interessante, o que ele quer. Entenda, é um transtorno, uma doença, nosso cérebro funciona diferentemente do seu, ele tem uma lógica própria que, para nós portadores, é a correta pois não conhecemos outra. Se conseguimos fazer uma lista de prioridades razoável, as intercorrências do dia a dia subverterão essa ordem e ela será abandonada.
4) SE TEM QUE SER FEITO, FAÇA NA HORA - Uma das características do TDAH é a PROCRASTINAÇÃO, ou o adiar indefinidamente aquilo que deve ser feito. Na visão dos trouxas (os não portadores) isso é apenas irresponsabilidade ou preguiça. Nada mais enganoso. Sabemos o que deve ser feito, sabemos quando deve ser feito, sabemos porque deve ser feito. Mas não CONSEGUIMOS fazer. E o pior, sofremos por não conseguir fazer. A paralisia é sofrida, é incômoda, mas, na maioria das vezes, é insuperável. Só conseguimos reagir quando o desastre é iminente ou inevitável. Em geral tarde demais.
5) PENSE NO AMANHÃ, NO SEU FUTURO -
O cérebro humano funciona através de recompensas, o cérebro sem TDAH consegue projetar recompensas futuras, mais ou menos assim: vou fazer esse sacrifício hoje para no mês que vem ou ano que vem eu colha os frutos. O cérebro do TDAH não, ele só reconhece recompensas imediatas. Semana que vem já um futuro distante. Imagine ano que vem. Precisamos da recompensa AGORA.
6) PRESTE ATENÇÃO - Somos desatentos porque queremos? Pelo amor de Deus, ninguém é desatento por opção, principalmente ao ponto da desatenção tornar-se um problema, um dano. A DESATENÇÃO É PARTE DO TRANSTORNO. Eu posso estar olhando pra você, reagindo ao seu diálogo e não estar mentalmente presente. Meu cérebro 'reserva' uma pequena parcela de atenção ao seu diálogo desinteressante ou desagradável, o restante, a grande maioria na verdade, pode estar em Nárnia, na Terra Média ou em Hogwarts. Ou simplesmente num diálogo mais interessante na mesa ao lado, ou numa música que toca ao longe, ou na TV ligada...
No dia seguinte aquele diálogo foi deletado de nossas mentes e se você se referir a ele, para nós será uma absoluta surpresa. 
7) DEIXE DE SER PREGUIÇOSO/PREGUIÇOSA - Obviamente que o que vou dizer vai parecer uma mera defesa da preguiça, mas não é preguiça, é inércia. Podemos ter preguiça de dar uma resposta e ter que continuar uma conversa. Mesmo que isso possa prejudicar nossa situação naquele diálogo. Podemos fingir que não lemos aquela mensagem por preguiça de ter que se explicar porque não quer sair, encontrar os amigos, beber... Podemos ficar quietinhos em casa e não atender à campainha insistente por preguiça de ver gente. Mesmo pessoas que gostamos. Podemos escolher não entrar na piscina de casa em um dia de forte calor, simplesmente por preguiça de trocar de roupa, andar alguns metros até a piscina e entrar na água fria. Podemos, e temos, ter preguiça para coisas e situações que nos beneficiem, que dê prazer, que nos dê lucro, simplesmente porque o que queremos é manter a inércia, manter aquele momento de... sei lá, tenho preguiça de pensar nisso.
8) SAIA MAIS CEDO, COLOQUE O DESPERTADOR... A noção de tempo é uma das maiores aberrações do cérebro TDAH. Trinta dias pra mim, é quase uma eternidade. E sempre sou surpreendido pela rapidez com que um mês chega diante de mim. Uma semana? Ixiiii, é muito tempo. Seis meses? Nem sei o que é isso...
Quantas vezes saí em direção a um compromisso com meia hora de antecedência sem considerar que o trânsito intenso daquele horário tornava a meia hora impossível de ser cumprida. Aí eu dirigia como um louco, fazendo ultrapassagens Irresponsáveis, xingando e brigando com todos as 'lesmas' que se arrastavam na minha frente.
Quantas vezes na infância ouvi minha mãe perguntar: Você não viu que estava escuro, que já tinha lua no céu? Não, não tinha percebido. Na verdade tinha, mas na minha cabeça haviam passado poucos minutos desde que ela surgiu. Talvez fossem seis e meia e não nove da noite.
9) VOCÊ SÓ SE LEMBRA DO QUE TE INTERESSA - Sim e não. Em geral essa frase é dita num tom de crítica a uma pessoa desonesta, que diz se lembrar apenas do que lhe interessa. Não é bem assim, o cérebro TDAH 'não ouve' o que não lhe interessa, o que não desperta sua atenção ou desejo. Não é proposital, é uma doença, um transtorno que nos impede de 'arquivar' parte do que ouvimos, falamos ou vivenciamos. Não é escolha.
10) VOCÊ É FRIO/FRIA, INDIFERENTE, SÓ SE IMPORTA COM VOCÊ. Sinceramente, não nos importamos nem com a gente mesmo. Se só nós importássemos com a gente não nos sabotaríamos tanto, não passaríamos por tantos empregos, por tantos relacionamentos, por tantos constrangimentos, por tantas perdas. Muitas vezes não respondemos porque não estamos presentes, embora nosso corpo esteja ali. Parecemos indiferentes porque passamos por cima dos detalhes, esquecemos as datas, perdemos a hora, erramos o caminho, repetimos os mesmos erros...
Claro, temos consciência de que não é fácil conviver com pessoas como nós. Claro que nada do que disse acima cura feridas abertas ou apaga falhas graves. As feridas continuarão doendo, as consequências das falhas ainda estarão presentes. Mas se você souber de antemão com quem está lidando poderá julgar de maneira mais isenta a personalidade do TDAH com quem convive.
TDAH não é falta de inteligência, não confunda, TDAH é um transtorno de execução. Sei o que fazer, como fazer, quando fazer, mas não consigo fazer a tempo, de maneira perfeita ou simplesmente me esqueço de fazer. 
Pode parecer um monte de coisas: irresponsabilidade, inconsequência, preguiça, desrespeito, indiferença...
Mas é TDAH. 

sábado, 22 de janeiro de 2022

O TDAH E A EXAUSTÃO DA PANDEMIA


Estamos entrando no terceiro ano de pandemia e a maioria de nós está cansado, esgotado de tanta tensão, tantas medidas de prevenção, tantas más notícias, enfim...
E nós, TDAHs, como estamos?
Minha mulher acha que passo incólume por tudo isso. Não é verdade. Talvez eu passe de maneira diferente, mas nunca incólume.
A exaustão mental que todos estamos sentindo faz parte da rotina diária do TDAH adulto. A tensão que vivemos para tentar evitar a próxima falha, o próximo esquecimento. O terror quase diário ao descobrirmos que erramos novamente, esquecemos novamente, seremos advertidos novamente, seremos demitidos novamente... Essa expectativa não nos abandona e, em grande parte dos TDAHs, toda essa história de vida ‘evolui’ para ansiedade crônica, pânico e afins. Vivemos aos sobressaltos. Ninguém imagina o que é ‘achar’ que errou ou esqueceu de algo importante para lembrar-se segundos depois que fez o que deveria. Uma descarga de adrenalina atravessa todo o corpo, uma sensação de pânico assalta a alma, um filme dos piores erros já cometidos passam num flash na mente seguido das possíveis consequências advindas dessa nova falha. De repente lembramos que sim, fizemos a tal tarefa, ou não nos esquecemos do que não deveríamos nos esquecer. Em geral, um leve sorriso de alívio surge no rosto. O corpo relaxa imediatamente e uma sensação de paz toma conta da alma. Mas por quanto tempo? Dias? Semanas? Meses? Doce ilusão... Podemos ter esse conflito interno várias vezes por dia. Diariamente é praticamente garantido. Somos programados pela cultura atual a sermos máquinas de produtividade infalíveis. Devemos ser perfeitos em todas as áreas: pessoal, profissional, afetiva... Existe uma propaganda do analgésico Advil cujo slogan eu odeio: para você fazer mais por mais tempo. Isso é insuportável. Ninguém deveria ser submetido a isso. Mas somos, e essa nova cultura do fazer mais por mais tempo nos desmascara, praticamente não temos tempo para apagar os rastros dos nossos erros. Ou de simplesmente consertá-los antes que sejam descobertos. Ou, no mínimo, conseguirmos boas desculpas para o enésimo esquecimento. Não há tempo. Tudo é em tempo real. Tudo é agora, on line e com dezenas, centenas de pessoas com acesso ao que deveríamos ter feito.
A exaustão da pandemia nos é familiar. É nossa companheira, nossa irmã siamesa. Carregamos o inimigo dentro de nós mesmos e o combatemos vinte e quatro horas por dia, sem descanso, sem pausa... Mesmo nas férias, nos fins de semana, quando o aspecto profissional descansa precisamos estar atentos ao lado pessoal, precisamos medir o que falamos aos nossos parceiros, precisamos parecer interessados nos assuntos alheios, interagir socialmente... Não há pausa quando tudo que se quer é que o mundo pare e nos deixe respirar, pensar e agir no nosso tempo, do nosso modo.
Conviver com a exaustão não é novidade para o TDAH, a novidade é que agora podemos externá-la sem medo de sermos apontados como fracos ou anormais. Não sei quanto tempo isso vai durar. A pandemia, que no início parecia que iria revelar o melhor lado do ser humano, está revelando o que há de pior na humanidade, quem pode explora os mais frágeis da forma mais despudorada imaginável. Não há solidariedade, empatia ou complacência. Como diz o ditado: farinha pouca, meu pirão primeiro.
Quem, como os TDAHs, vieram com menos armas, ou armas inaptas para essa batalha, que se dane. Viva às turras com suas próprias deficiências e fracassos. Por isso são tão importantes as políticas públicas afirmativas. As políticas públicas visam dar a todos senão as mesmas armas, dotar os mercados de regras que igualem o jogo. Mas isso é pedir demais do ser humano, que ao longo da história se notabilizou por explorar os fracos, legislar em causa própria e expoliar seus pares.