terça-feira, 23 de dezembro de 2025

TDAH: OS SINTOMAS SE ENTRELAÇAM








Em geral vemos os sintomas do TDAH sendo tratados de forma estanque, como se fossem individuais, cada um ao seu tempo e sua hora. Nada mais errôneo. O TDAH não é como uma salada, onde os ingredientes vêm separadamente numa mesma tigela, não, o TDAH é um patê, onde os ingredientes são homogeneizados transformando uma fusão de sabores em um novo sabor. Tornando as reações dos portadores ainda mais complexas e potencialmente mais lesivas a nós mesmos e a quem nos cerca.
Vamos imaginar uma situação corriqueira e banal: devemos pagar contas em datas determinadas, temos que comparecer à este ou aquele compromisso em data e hora marcados. E quase sempre não cumprirmos. Para minimizar essas falhas baixamos um app recomendado para TDAHs.
Num dia dez da vida no meio da manhã soa a notificação de pagar tal conta. Aquele estava sendo um dia atribulado, pressão no trabalho, atraso nas demandas da chefia. Uma rápida olhada no celular e simplesmente ignora a notificação.
Mas, como precaução, sabedores da possibilidade de ignorar a tal notificação, o TDAH programou outras duas, além de mais um lembrete de aniversário do fulano. E as notificações se sobrepõem, o aviso sonoro se repete, o telefone na mesa não para de tocar, a chefia já mandou duas mensagens cobrando a demanda atrasada... E soa o lembrete do aniversário do fulano. Uma ira cega invade a mente, aquele barulhinho insuportável, o telefone que não para, o chefe que cobra... 
"Desinstala essa merda de aplicativo" baila na mente. "Desinstala". Não precisa de outra sugestão. Em menos de um segundo o app é desinstalado. Um enorme alívio, uma sensação de liberdade e a certeza de que ao final do dia se lembrará de pagar a conta. O aniversário do fulano é bom, mas nada de tão importante. 
Um dia de liberdade... 
Dois dias de liberdade... 
A Internet foi cortada. Jesus, a conta! Não foi paga. Aquele lembrete de dois dias atrás era a data limite. O limite do corte. E cortaram. 
Uma sombra toma conta da mente, no app desinstalado tinham vários outros compromissos, muitos de trabalho. Para tudo, reinstala o aplicativo, entra de novo com sua conta e o app carrega os compromissos agendados. Várias notificações das últimas setenta e duas horas saltam diante do olhar atônito... Mais contas, ligações, e hoje, hoje, ligar para o fulano e oferecer tal contrato ou produto ou projeto. O fulano cujo aniversário foi ignorado há três dias. O fulano foi esquecido e agora é preciso entrar em contato para oferecer algo. Uma simples mensagem formal de feliz aniversário poderia ter facilitado a abordagem de três dias depois. Mas não, o lembrete foi deletado como inconveniente e o cliente ignorado. 
Milhões de desculpas e mentiras assaltam a mente. Não se trata de um amigo, mas de um cliente importante e vaidoso cuja mensagem de parabéns seria notada. E o pior, a chefia havia passado a data e a recomendação de que a mensagem fosse enviada. A desculpa, ou mentira, teria que ser verossímil para ambas as partes. E o pior, a Internet foi cortada. A desculpa, teria que ser criada e posta em prática agora, em pleno horário de trabalho interrompendo todo o fluxo de rotina da empresa para que se resolva algo que deveria ter sido feito há três dias. A semente do destempero está plantada. Um turbilhão de desculpas inundam a mente, pressionado pelo pouco tempo, pela necessidade de retomar o trabalho, pela urgência em contatar o tal cliente, uma desculpa qualquer é escolhida e posta em prática. Os resultados são previsíveis. Ainda que não seja um desastre completo, as marcas das sucessivas desculpas, dos atrasos recorrentes, dos erros sucessivos ficam gravados na imagem do funcionário TDAH. 
O somatório dos sintomas explodem simultaneamente trazendo consequências nefastas e, muitas vezes, irremediáveis. Ao esquecimento e desatenção, somaram-se a irritabilidade, impulsividade e autossabotagem, tornando o ato de notificar o pagamento de uma conta e um lembrete de aniversário em  um enorme problema de trabalho com consequências seríssimas. 
Assim são todos os nosso dias. Ou todos os nossos instantes. Precisamos estar alertas para que essa enorme onda de sintomas não se transforme num tsunami que nos arraste, arrastando junto quem nos cerca ou aquilo que nos dá segurança e ou sustento. 
Assim como o TDAH é um conjunto de sintomas, seu enfrentamento pede um conjunto de ações. Medicamentos por si só não resolvem, mas se acrescidos de uma boa terapia, um fundamental conhecimento do transtorno e um necessário mergulho em si mesmo, se torna uma ferramenta poderosa de bem viver. 

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